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Cardilium

Cardilium

Se um piano falasse

Se um piano falasse diria palavras como: Sedução, admiração, paixão, azul, vício, fantasia, espiral e alegria. Se um saxofone falasse cantaria em surdina gemer, subir e descer, pobreza e raças. Um bombo diria revolução, perseverança e igualdade. Um acordeão diria: povo, fraternidade e liberdade. Se um bailado fosse texto, seria intelecto, sensualidade e empatia. Se a tua voz fosse a minha, seria permuta. Adjectivos que qualificam a vida. Uma orquestra é uma mistura afinada de palavras que não se estagnam com a pontuação. Uma orquestra grita, geme, e uiva ao comando. Comando que uma pauta rege. Assim bate o coração, as trocas gasosas que bombeiam o sangue que irriga o meu ser. Assim bate o meu peito e o que ordena a minha vida. Fantástico, sublime. O meu corpo é a minha orquestra, é a minha vida. Somos musica, somos libido, somos aventura, somos flores, paixão, cor e sedução. Somos feios e bonitos. Bons e maus. Pacíficos e agressivos. Sábios e ignorantes. Somos massa, seremos pó. Todos seremos pó. Somos do mesmo bairro. Somos vizinhança sem saudação. Somos coerência ancestral. Somos do piorio. Destruímos o planeta com plástico. Comemos plástico. Vestimos plástico. Fazemos música e pessoas de plástico. Os oceanos degelam e sobem. A lua fica cheia e nem damos por isso. Não vemos o quarto crescente. O sol queima-nos. Não reparamos na fome. O suicídio já não nos atrai e apelidam-no de cobardia. A eutanásia não é livre. Os cristãos são como os outros. Os padres são antiquados intérpretes de Deus. Jesus Cristo era um Homem como eu, um político. Um filosofo. Os médicos detêm a verdade e os políticos a mentira. A nostalgia pertence-me. Jorra dentro de mim verdes eleantes e submissos. Se pudesse ser Africa o meu sinal. O cheiro a mato rubro. A terra quente e boa. Fico doente pelos teus lábios, além. Ano após ano, vivo dias densos do fumo que me torturou. As imagens são amargas como risos desenhados com riscos. As madrugadas elevam-me. Corto os pulsos para não ver. Os meus irmãos choraram a mesma mágoa, a mesma perda. Já não vejo os dias. As bebedeiras já não me sabem. Daqui à morte falta metade.

Chuva

Chove pouco mas certinho. As lágrimas que caem do céu são boas para as entranhas da terra. Para misturar as sementes. A chuva faz-me bem. Faz-me pensar. Enrolado no meu sítio fico atolado de pensamentos. Penso em mim. Penso na minha infância e nas tempestades. Penso no sabor das torradas de domingo á tarde que a minha mãe preparava quando vinha da bola. Penso nos primeiros acordes que dedilhei. O amor que ganhei á musica. As primeiras palavras que escrevi e os primeiros números que somei. Penso naqueles três ou quatros amigos. No meu professor da primária. Na minha bata branca. Nos professores que gostava. Penso na aventura que foi as minhas primeiras saídas á noite. Os meus primeiros gostares. As minhas primeiras mentiras e desilusões. Na raiva lenta maligna que comecei a sentir. Na inadequação silenciosa. No medo mascarado de fortaleza. As minhas primeiras férias sozinho já não me lembram. Hibernei e vivi uma mão cheia de anos, sem me lembrar, ou querer lembrar-me sequer. Recordo cheiros e sombras. Não me amei ou amei. Não me lembro de dez anos ou mais. Não me lembro de ontem ou anteontem. Sei que estive em Marraquexe, Amesterdão e Lisboa. Sei que fui á praia. Sei que tive sexo com sombras, bebi e fumei. Dormi ao relento e viajei sem dormir, caminhei adormecido. Chorei para a lua e sorri para o sol. Chorei por dentro. Fui preso e solto. Dormi num degrau. Comi o que os outros comeram. Continuo preso á liberdade. Outras estou livre na prisão. Pelo menos sinto-me. O estar, é discutível, mas é meu. Sou semente misturado com terra regada com chuva de Maio. Sou Setembro. Sou pôr-do-sol, sou regresso, sou passado. Sou futuro. Sou mudança. Sou Pai, sou filho. Não sou Espírito Santo. Sou Alma. Sou amigo. Sou solidão e companhia. Sou esperança, Sou o que sou, pelo que fui. Sou medo e fé. Sou desamor. Sou Amor. Sou insubordinado e respeito. Sou recordação, sou lembrança. Sou duro e meigo. Sou uma besta e bestial. Sou poesia á noite, e prosa de dia. Sou acima de tudo Ser. No maremoto dei á costa e salvei-me. O mar devolveu-me á terra. Não deixei de saber nadar. Aprendi a andar com a chuva

O Jogo

Subi ao monte para gritar. Enfastiado com a promessa adiada de que o meu clube ia ser campeão. Confirmou-se na avenida outrora de Aliados, que não ganhou quem devia. Vê-los baterem-se com, e, pela mesma bandeira não me alegrou. Confirmou-me apenas a escória que são as claques neste País. Confirmou-me a incultura de que são feitas. O fascismo xenófobo que defendem. Não me é difícil ver, o que, e quem, por detrás movimenta, lava dinheiro e o cérebro. Choca-me solenemente, ver seres humanos pensantes ??? Serem guiados a um qualquer estádio, como se de bestas se tratassem, caminhando entre curros improvisados. Salta-me á vista punhos erguidos de uma ira sem sentido, de, e para pessoas iguais, que apenas nasceram a gostar de outro clube. Pessoas iguais e do mesmo clube. E gasta-se, milhões de euros, na credibilidade que afinal o futebol como espectáculo não tem. Não há canal que se preze que não tenha um discursante académico futebolês. Sustentado comentador mais bem formado que o outro, com indisfarçável clubite aguda, a gerir as suas emoções e opiniões. Quantos dirigentes desportivos afinal têm o cadastro limpo??? Quantos foram antes de ser dirigentes, cidadãos com feitos relevantes, vindos de um associativismo que já não existe. Quantos??? Quantos nos cheiram andarem de mãos dadas com a política. Quantos querem devolver o jogo ao jogo? Compram-se jogadores de classe duvidosa, e sentam-se os nossos “putos” na bancada. Compram-se árbitros, treinadores, trocam-se fisioterapeutas, estádios, compram-se clubes até. O Móbil do crime sempre o mesmo. Viver debaixo de um guarda-chuva enorme, impermeável ao fisco e ao do tribunal. Viver a gozar com milhões de pessoas que gostam do futebol como um jogo. Jogo estético, viril, elegante, rápido, e de estratégia. Jogo onde não devia haver lugar para dúvidas ou doping. Jogo onde as pessoas se deviam abraçar. Jogo de domingo á tarde, de família. Jogo pelo jogo.

Consumir ?

Consumismo é saber comprar quando do dia se trata alegrar? Consumismo não é uma escolha, é ser escolhido pelas cores, pelas publicidades, pelos segundos de prazer, e por um armário ou dispensa cheia de objectos que raramente se usufrui por falta de tempo, de disposição ou apetite. Esse voraz apetite que impele a comprar, comprar, comprar sem necessidade visível da força que nos seduz. Consumismo, pode ser apenas a arte de coleccionar. Como se colecciona selos, púcaros ou chávenas. Consumismo é o apelo que nos é feito. Consome-se pessoas, futebol e árbitros. Sapatos, sapatilhas e cachecóis. Bonés, óculos e pin´s. Enfim, toda uma panóplia de males desnecessários, como se de doença se tratasse. Para quê 150 pares de sapatos se só podemos calçar uns. Para quê 220 t shirts, se do mesmo mal padecemos. Para quê uns “vanes” aos quadradinhos se nem sequer jogamos xadrez. E uns óculos de aros brancos para disfarçar os olhos negros e inchados do embate da vida. Olhos negros cansados e inchados. De mal dormir pelo tempo que urge e se afasta dos nossos sonhos. Tão feliz podia ser eu com a roupa que trago no corpo, se dormisse bem e com tempo. Se dormisse no leito certo, sossegado, em paz. Se tivesse saúde e sopa. Se os meus tivessem sopa e saúde. Consumir bens pelo desconsumo da alma e do espírito. Inté !....

agosto !....

Existem momentos perdidos na vida de todos nós. Existe vida momentânea, tempo perdido e achado. Existe tempo para além do tempo. Tempo cristalizado, que por mais tempo que dure, é infinito. Existem férias, sítios, lugares, cheiros e músicas intermináveis. Existem pessoas, que por mais tempo que passe, não passa pelas pessoas. Existe tempo presente e efémero. Existe a saudade. O Amor só é bom se doer. Existe a ignorância de não sabermos de quem gostamos. Existe a desculpa do afastamento. Existe a justificação. Existem caminhos que percorremos juntos. Os rios que ligámos as margens. Existem as praias ventosas, o sotaque e o calor. Existem castelos de sonho construídos pelo pensamento. Existe a distância. Existe a família. O egoísmo e o altruísmo destroem o bom senso. Cremos a nós mesmo o julgamento. Temos por nós mesmos compaixão. Pintamos de alegria a nossa triste alma. Povoamos o nosso espírito de pessoas que imaginamos. Lembramos quem nos fez sentir. Esquecemos quem nos fez desacreditar. E caminhamos, mesmo sem caminho visível, caminhamos. Adivinhamos o caminho. Fechamos os olhos e lembramos. Lembramos a roupa, o cabelo e os orégãos. Lembramos a voz, as lágrimas e a luz. Lembramos o mar, a serra e o rio. Os kilometros divididos. As noticias partilhadas. Os sorrisos soltos e o calor. Lembramos o pó da planície e o estrelado céu do Alentejo. Lembramos as tabernas e as festas populares. Lembramos saudade afinal. Lembramos sossego. Lembramos esperança. Lembramos querer…….Esquecemo-nos de esquecer.  

Maio maduro Maio !

Respirei junto ao rio. Vinha cansado de uma corrida em que não participei. Os kilometros foram feitos tão devagar que me cansaram. Imóvel o rio observava-me. Ouvia os lamentos de uma vida. Ouvia o meu sorrir, o som das músicas que ouvia. O vento assobiava e as arvores dançavam pela noite dentro. O chorão chorou quando falei das noites em que acordei sem ter adormecido. Choravam pela forma com que me identificava com a dor, com o medo. O chão ficou enlameado das lágrimas que não deitei, mas que bailaram com o chorão. O cabelos verdes da árvore debruçada para mim quebrou o luar, desenhou a noite com sobras coloridas, de afagos, beijos e abraços. A mesa estava posta com talheres de prata. As horas foram minutos somados. As mãos tinham o perfume do toque calmo, tranquilo. A terra parou para sentir. Os pássaros espiavam invejosos a noite toda. Namoriscaram de árvore em árvore. O toque, a pele, os lábios, o cheiro, as falas, o respirar são sonhos que comandam o sentir fictício, das horas que passo a sonhar. Saudade e desejo de uma felicidade completamente incompleta, escrita nos livros que leio, nos livros onde estudo, a média, a mediana, a estatística. Os livros que não falam de amor, de despedidas e regressos não são livros. São aglomerados de letras. Como as viagens que são a soma de kilometros percorridos sem sentido. As letras que me fazem sentir, são escrita. A poesia que inunda o coração jamais se esgotará. A poesia escreve-se com o olhar. Escreve-se com o que não se vê. O pecado mora ao lado. A luxúria é o exagero de querer sentir. Quem sente muito não percebe de luxúria. Luxúria é um estado de entrega, de prazer dividido. Luxúria é um acto, não é um estado de espírito. Luxúria é sentir a grandeza de sentir. Luxúria é tremer ao pensar no acto. Luxúria é fazer amor na mesa preparada. È adivinhar o sorriso de quem nos vê. Dos pássaros, do chorão, das fontes, das pedras e dos caminhos. O vinho não apareceu.

Abril Abril

Que Abril floresça junto com Novembro. Que nasça um Dezembro de pranto. De esperança. Que a liberdade não feche hospitais nem escolas. Que nas Prisões a esperança de Maio seja luz. Que se ache neste País de poetas, normal a poesia. Que em cada cravo, a revolução seja presente. Que não proliferem Marques Mendes e afins. Que Abril não retroceda do desencanto colectivo. Que Salazar não faça sentido. Que a escolaridade seja livre e de gratuito acesso. As conquistas de Abril existem. Pode se escrever. Pode-se cantar. Agora o povo unido jamais será vencido. Nasci de uma acto de Amor em plena ditadura. Estava a começar a andar quando senti este País trocar de hemisférios. Preso por livre. Silêncio por barulho. Ary dos Santos por Fernando Tordo. Sérgio Godinho com Xico Fanhais, o José Mário Branco com Jorge Palma. Aperfilhados pelo Zeca. O das quadras. O da frente. Muito á frente. Respirava-se musica que brotava em cada esquina. Das paredes nasciam as palavras. Jorravam punhos solidários do sorriso das pessoas. A erva saiu á rua num dia assim. O pintor morreu, mas doou a sua obra ao povo. A maré-alta mantinha-se em descoberta. O povo abraçava-se. Nas avenidas de Abril, juntos desciam-mos em surdina, os lamentos que tinham ficado para trás. O povo é quem mais ordena. Os senhores estavam escondidos em culpa. Os estudantes não cortaram o cabelo. O beijo deixou de ser pecado. E dos poemas se fez vida, da poesia que é a vida. 25 Abril obrigado.