Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Cardilium

Cardilium

Vai, voa

Sento-me e espero debruçado sobre mim próprio carregando-me. O vento passou apressado por aqui, agora mesmo. O céu está translúcido. Vê-se para além dele próprio. Nunca o tinha visto assim, transparente. Também nunca sentira sob os meus joelhos o peso da minha alma. Estremeço quando olho para o azul paraíso e vejo do outro lado a continuação do mundo. Vejo as pessoas de cabeça para baixo como se caminhassem ao contrário. Sinto-me louco, como se uma droga fortíssima me dominasse.

 

Será que a loucura se instalou em mim, ou o que vislumbro existe?

 

Esta transparência de mim mesmo e do céu, precisa ser arrancada antes que o inverno se apodere frio e cruel, do meu coração. Em campos floridos dançam as árvores de que fujo. Abraço-me e enrolo-me na terra. Não quero ver, nem ouvir. Preciso de acordar e purgar-me. Uns olhos azuis fitam-me serenos. Estendo a minha mão. Acalmo-me. Sinto presença ali. O medo alvorou e sinto um mar calmo invadir-me. Uma luz forte de um sorriso embala-me. Um afecto, um afago, uma voz sabedora da ausência do meu medo, aconchega-me, com uma palavra dita:

 

- Filho, estou aqui. Sempre soube que te encontraria, e mais, sempre soube que te encontraria, salvo. Foste tu que te salvaste. Pelo céu rompido a que tu chamas transparente, vi o sal das tuas lágrimas e a solidão do queixume gemido, esfaquear-me o peito. Só tive que te estender a mão, porque tudo o que tinha que ser feito, fizeste-lo. Sempre o soube. Sempre soube que o inferno seria a salvação. Sempre vi um furacão arruinar-se em bonança. Sempre acreditei na intensidade sôfrega da tua sensibilidade. Uma pessoa como tu, não pode ser uma má pessoa, apenas pode ter más atitudes. És genuíno, e como eu sei tão bem, a dor que é ser genuíno neste mundo. Fizeste o teu caminho. De agora em diante filho, jamais o inverno te afogará nessa chuva que ainda está por cair. No próximo verão nunca te secará a boca de espasmos. A tua travessia está concluída. O teu mar será marés sempre vivas, mas tu já sabes navegar e ler o vento. Já sabes orar com a lua. Já sabes adormecer no meridiano da tua decisão. Já sabes existir em ti mesmo. Era isso, não sabias existir dentro de ti. Como S.Lucas me relatou és pródigo, e ser pródigo é ser generoso, liberal e magnânimo. Vai, voa.