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Cardilium

Cardilium

“Vim bem psicologicamente”

Estive na Guiné na guerra. “Vim bem psicologicamente”, mas as marcas estão cá. Tenho sessenta anos. Vocês os de quarenta não sabem o que é a vida. Não sabem o que é encarar cada dia olhos nos olhos com a morte. Esse binómio vida morte, morte vida, morte morte, vida vida. Não sabem o que é a desconfiança na sua nascente, a desconfiança no seu crescimento, a desconfiança da sua confirmação. Vocês não sabem o que é ser órfão de uma nação, não sabem o que é ser preparado para matar para não morrer. Não sabem tanta coisa. A guerra está cá, existe nos meus sonhos que são pesadelos, no meu acordar e adormecer, ao dobrar de cada esquina, nos rostos das pessoas, nos movimentos apressados, nos ruídos, nos cheiros, nas gargalhadas, na noite, no dia, nos rios. Em todo o lado ela coexistiu comigo estes quarenta anos. Mas “vim bem psicologicamente” porque sou forte. Muitos não ficaram assim, outros até tiveram a boa ventura da morte. Vejo muitos por aí na televisão a falar de guerra, da guerra que eles desenharam nos gabinetes, na guerra que eu calcorreei com os meus pés feridos, o meu coração ensanguentado, a minha discordância e ingenuidade, a guerra em que matei para não ser morto. Quantas vezes questionei a justiça divina, e a humana, as crianças, os velhos e um povo preso na sua terra. Um povo bom e quente que teve a má sina de ter nascido ali, pouco mais que isso. Uma guerra sem sentido e desumana. Vens-me agora tu falar de crise. Ó filho já estou por tudo. Eu "vim bem psicologicamente" porque sou forte, mas as marcas estão cá, nos meus sonhos.

 

Recensão critica da observação de um ex-combantente durante a compra de umas calças camufladas como as da guerra, mas com pêlo por dentro.