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Cardilium

Cardilium

Barbado

Agasalho-me de vento neste chão de solidão. Os meus cabelos puxados em remoinho não me deixam avançar. Nos recantos escuros jazem vivos meio mortos homens. Barbados e assustados com a sua própria presença, amedrontam a presença de outros homens, como se todos os homens não fossem homens também Este fosso entre o mundo e a vida não escolhe a crueldade com que se demonstra a existência. Fazem cobranças os homens e deus não interfere. Esse ente amantíssimo que se distrai com a miséria sempre dos mesmos. Fazem cobranças os homens na terra e deus no céu. Há quem nasça para pagar sem nunca nada receber. E este nada é tanto e tão pouco. Um nada feito de abraço, de beijo, de um café quente, de uma manta, ou de um pão. Enquanto na esquina dos barbados a vida é falecida, passam rápidos carros potentes com uma vida que parece vida sem a ser, talvez. A minha vizinha de baixo geme de noite, não sei se é a ressonar, de sofrer dormindo, ou se se masturba a noite toda. Oiço-a ao fumar nas madrugadas da minha janela. Oiço o gato. E o autoclismo a descarregar. A vida dela também é a minha. Partilha-a sem saber que a partilha. Nas escadas dizemos baixinho um desconcertado bom dia em sussurro. Num dia acontecem muitas coisas, se não dermos a oportunidade de apreciarmos ambas, não as saberemos destrinçar nunca.