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Cardilium

Cardilium

Vivi dentro dos olhos que me viram

Mística aquela paisagem enfeitada de choupos e enfeitiçada por aquela mulher morena e esguia esquiva no olhar que soltou intensamente ao passar. Difícil entender aquele olhar. Altivo e doce, distante e quente, forte e suave, trémulo e seguro. Um simples olhar descrevia-me. Ofereceu-me e retirou-me uma fortuna com o olhar. Foi o início e o extremo. O mar e o deserto. A seca e o dilúvio. Soube-me a corpo na minha boca. Há quanto tempo não me sabia a corpo. Aquele doce agro contorcido pelo inicio de um espasmo que nunca o é. Os corpos contorcem-se prometendo espasmos que se adiam sem se realizarem. É esse início de loucura que me seduz e repele. Ver-te desaparecer no empredado sombreado pela noite de choupos, foi como sentir uma cascata descer do alto de uma colina e estatelar-se no lago, compondo uma neblina ensurdecedora que me varre o físico e me devolve a emoção. Liberto de cercas, não me sinto cercado de praças, bares e pessoas distraídas que não se vêem e não são vistas. A cobardia da auto-ilusão desvanece com a idade. O olhar cirúrgico de nada querer querendo, cresce com a idade.

 

Sempre tive duvidas. Não na visita da felicidade, mas na sua presença, no seu ficar. Os raios desfalecidos de luz trouxeram-me a doença. Sinto os últimos dias vindos. Sinto os outros. Já não sinto presença, já não sinto ausência. Já não sinto. Sinto apenas a doença que nem sequer galopa. Vai a trote por mim dentro. Maldito cavalo que não é alado. Aos poucos a infecção sobe por mim a cima, por mim adentro. A minha alma já não chora nem ri. Sei-me doente e as meiguices de ânimo que me metem debaixo da língua com um copo de água a seguir e um afago, para mim é adiamento. Não falo mas oiço. Eles não sabem que eu oiço. Preferia o contrário, não ouvir. Sempre ouvi durante a vida. Se pudesse escolher, preferia não ouvir que não falar. Calei. Agora sim calei-me de vez. Não incomodo, mas também não alegro quem me alegra a mim. Nem sequer sabiam que eu ouvia.

 

Os meus últimos dias aqui?

 

Passeio-os dentro das recordações. Recordar é voltar a viver de novo.

 

E vivi nos olhares dentro dos olhos que me viram e olharam. Vivi dentro dos olhos que vi.