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Cardilium

Cardilium

Estória da História

Regressei ás ruas onde vagueei. Deambulo de olhar perdido e fascinado. Está tudo diferente. As casas velhas não existem e fizeram uma estrada a meio. O Mário, o Alentejano, o Chico, e a Russa cabeleireira de voz grossa estão na prisão, e os outros no cemitério. Saí agora da escola. As aulas correram bem e os alunos assimilaram bem o conhecimento, a informação e a comunicação. Vejo-me agora aqui perdido nesta hora tardia no bairro onde pensei falecer. Estou muito mais vivo que morto. Pertenço aqui mesmo pertencendo a outros sítios também. Por vezes penso que tudo é uma época, uma fase, e que ciclicamente a vida se retorna. Lá em baixo, os prédios coloridos não têm a cor das barracas destruídas nauseabundas e escuras, feitas de um estranho conforto que me abundava e bastava à época. Assustadora esta parte ainda vigente em mim. É como se a adaptabilidade fosse mais um sentido meu. Na verdade a inadequação e a adaptabilidade são duas partes distintas de tão iguais se parecerem que coabitam em mim. Recordo o meu pai de ar fechado e sofrido esperando-me no carro no largo da fonte, no cimo da ladeira, de portas trancadas, e a minha mãe no banco de trás deixando livre o lugar do morto para mim. Era assim que ela me via, morto. Eu chegava, entrava, sem que nenhuma palavra se soltasse ou recebesse. Havia um rádio no carro que não se ligava, não fosse algum discurso, noticia ou som, quebrar aquele silêncio de velório. Os cafés agitados de pessoas iguais mantinham-se em formigueiro. O fugas gritava à entrada de um qualquer estranho que se aproximasse, e as pessoas sem expressão quedavam-se, tal qual como no ensaio sobre a cegueira, retrato próximo do quadro anil que descrevo. A loucura imposta de normalidade era norma e regra. Os putos em desenfreadas brincadeiras ali cresciam ao sair da escola, eram os do bairro, estavam destinados e tinham garantido o futuro, futuro diferente dos do bairro acima do cemitério.

 

Como pode uma centena de metros mudar a vida?

Como pode uma centena de metros, separar a vida da morte, sendo a morte vida e a vida tão próxima da morte. Era assim o bairro onde morto me senti vivo, e onde hoje me habito, muito mais vivo que morto.