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Cardilium

Cardilium

De nascente para nascente

A foz são duas nascentes abraçadas. Uma que corre para sul e a outra que aflui do norte, sem norte ou direcção. Encontram-se e ali mesmo se despojam e amam. Depois, desabraçadas fundem-se e seguem juntas de mão dada. Juntam o sal lacrimal e as ondas de emoção. Tornam-se mar.

 

A montante foram água doce, a jusante sal e alto de mar. Foram corrente antes de se tornarem maré. Enseada antes de serem baía. Calma antes de correria. Ancoradouro antes de porto e enlaço antes de abrigo. Segurança antes de fuga. Juntas fazem do mundo nascente e foz, foz e nascente, e não se sabe onde começa uma e acaba outra, ou onde ambas se inebriam num ser.

 

Calcorreiam estradas de fogo em noites de lua cheia de amantes. Ouvem os uivos de amor que brotam das encostas nas noites loucas de paixão. Entre as serras que fazem das margens um percurso impensado mas escolhido. Das escolhas feitas, caminham de mãos dadas e abraçam-se. São espelhos de Narciso, inspiração de poetas, prazer de corpos lavados, peixes que bailam, leito do vento, segredos de madrugadas e acordares de nevoeiros. Desprovidos de bens, comprovam a felicidade empática do nada ter e do muito ser.

 

Nem mesas, nem cadeiras nem decisões obvias, nem adiamentos. Nem ajustamentos sensoriais. Nem ilusões carregadas de desilusões negadas pelo medo da experimentação, do tanto que a solidão tem no crescimento. Antes da solidão existe a companhia benigna e serena de nós mesmos. Tanto que me diz a foz e a nascente, mesmo sem saber qual é cada uma delas, afinal exteriorizada.